DA INFÂNCIA SEM TELAS AO METAVERSO
- Marcelle Berton
- 12 de nov.
- 4 min de leitura

Como as redes moldam identidades
Cresci em uma infância sem telas digitais. Não havia celular, computador ou internet no meu dia a dia. As referências que tinha vinham do convívio com as pessoas, da rua em que eu brincava, dos livros da escola, das histórias contadas em casa. E, aqui, preciso abrir um parêntese importante: minha mãe era professora e uma grande contadora de histórias, antes mesmo de eu aprender a ler sozinho, ela já me introduzia ao universo da imaginação com sua voz, seus gestos, suas narrativas. Era ao redor dela, ouvindo contos, fábulas e relatos de família, que eu aprendia a organizar meu pensamento, a criar imagens mentais, a experimentar emoções. A palavra falada e a escuta atenta eram as telas da minha infância. Essa mediação da minha mãe não apenas transmitia conhecimento, como também me ensinava a importância da presença, do tempo dedicado, do olhar nos olhos. Era uma experiência viva, calorosa e profundamente humana.
Quando observo essa transformação, percebo que cada geração experimentou um tipo de tela como ponto de partida para se ver e se mostrar ao mundo. A primeira rede que marcou fortemente a adolescência de muitos foi o Orkut. Ali, a identidade era construída por meio das “comunidades” e dos depoimentos dos amigos. Era uma identidade pública, mas ainda ingênua, centrada na ideia de pertencimento. O adolescente sentia que precisava estar em uma comunidade que dissesse quem era: fã de determinada banda, integrante de uma tribo, parte de um grupo que compartilhava um gosto ou uma causa. A subjetividade passava pela vitrine do perfil e pelas fotos cuidadosamente escolhidas para o álbum.
Logo depois, veio o MSN, onde a identidade era performada em tempo real. As frases de status e os apelidos coloridos mostravam humores, paixões e recados cifrados. Ali, a construção de si se dava no diálogo instantâneo, nas conversas intermináveis com amigos, no famoso “entrar e sair” para chamar atenção. O adolescente descobria que podia editar a forma como aparecia, que podia esconder-se ou se mostrar, experimentar uma identidade mais fluida, menos fixa.
O Facebook ampliou essa lógica para um espaço mais formal e abrangente. O perfil virou uma espécie de currículo social. Ali, a identidade era moldada pelo “compartilhar”: fotos de viagens, conquistas acadêmicas, opiniões políticas. O adolescente se tornava um jovem adulto e sentia a necessidade de organizar sua vida em uma linha do tempo. A subjetividade ganhou ares de apresentação pública, de vitrine profissional. Era preciso cuidar da imagem, porque o Facebook já não era apenas para os amigos próximos: pais, mães, tios e até professores estavam ali.
O Instagram radicalizou a estética da identidade. Não bastava mais falar sobre si: era preciso mostrar. A vida passou a ser filtrada por imagens perfeitas, ângulos planejados, cores editadas. A identidade tornou-se visual, estética, performática. O adolescente se comparava com celebridades, influenciadores, colegas. Cada curtida era um sinal de validação, cada comentário, uma medida de reconhecimento. A fragilidade cresceu: o “eu” passou a depender do olhar do outro.
Com o TikTok, chegamos a um ponto ainda mais intenso. Agora, a identidade é moldada pela lógica do algoritmo. O adolescente não se constrói apenas para os amigos, mas para uma audiência potencialmente global. O “eu” precisa ser curto, rápido, divertido, surpreendente. A subjetividade é recortada em segundos. A cada deslizar do dedo, novos modelos de identidade aparecem: danças, desafios, opiniões. A comparação é incessante, e o algoritmo aprende o que queremos ver antes mesmo que saibamos. Aqui, a identidade já não é só escolhida: é também sugerida, moldada por forças invisíveis que nos dizem o que gostar, como se vestir, o que pensar.
Quando comparo tudo isso com a minha infância, vejo duas formas muito diferentes de constituição de identidade. A minha se deu no encontro direto, no corpo em movimento, no tempo mais lento da experiência. A das crianças de hoje se dá num fluxo contínuo de imagens, em janelas digitais que nunca se fecham. Não se trata de julgar qual é melhor ou pior, mas de perceber que estamos diante de uma transformação profunda na forma de ser humano.
E aí surge uma pergunta inevitável: se cada tela molda nossa identidade, quem seremos quando a tela estiver dentro do nosso corpo? Afinal, já estamos caminhando para isso. Realidades aumentadas, óculos de imersão, chips subcutâneos, implantes neurais: tudo aponta para um futuro em que a tela não estará mais apenas diante de nós, mas será parte de nós. Se hoje nos preocupamos com a influência de uma rede social, o que acontecerá quando a própria fronteira entre humano e tecnologia desaparecer?
Talvez, nesse futuro, a identidade deixe de ser algo que construímos com certa autonomia e passe a ser continuamente programada, atualizada, modulada. O metaverso e as tecnologias imersivas já ensaiam esse movimento: você pode ser um avatar, pode escolher uma aparência, uma vida paralela. Mas até que ponto essas escolhas são realmente livres se já nascem condicionadas por algoritmos e padrões de mercado?
Ao pensar nisso, percebo como é urgente oferecer às crianças de hoje espaços de resistência. Espaços de encontro real, de corpo presente, de tempo desacelerado. Porque, se a tela estiver dentro do corpo, a única barreira que teremos s
erá aquilo que cultivamos fora dela: vínculos humanos, natureza, silêncio, experiências autênticas.
Minha infância sem telas digitais não volta mais, mas pode servir como contraponto e inspiração. Ela me lembra que a identidade não precisa ser apenas performada diante de uma tela: pode ser vivida na rua, no brincar, no encontro com o outro. Esse é o legado que precisamos oferecer às novas gerações, para que, mesmo quando a tecnologia estiver dentro de nós, ainda saibamos quem somos fora dela.
Observação:
Este texto faz parte do material complementar do curso Desligue as telas e se ligue no mundo, uma série de encontros que mergulham nas transformações provocadas pelas telas e nas formas de preservar a presença, o corpo e a relação em meio a um mundo cada vez mais digital.


