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ROTINA NÃO É PRISÃO — É CHÃO

  • Marcelle Berton
  • 21 de out.
  • 4 min de leitura
Criança observa um relógio pendurado na parede azul enquanto pensa, simbolizando a relação entre infância, tempo e rotina.

Por que precisamos falar sobre rotina hoje

 

Vivemos um tempo em que tudo muda rápido demais. O trabalho, a escola, as relações, a tecnologia — nada parece estável. E, nesse movimento constante, a rotina acabou ganhando má fama. Ela é vista como algo que aprisiona, que repete demais, que tira a espontaneidade da vida.

 

Mas, quando penso nas crianças, vejo o oposto. A rotina não é prisão — é chão. É o que dá sentido à vida que ainda está sendo construída. É o eixo invisível que sustenta o mundo emocional, o corpo e o aprendizado. A previsibilidade que nós, adultos, associamos ao tédio é justamente o que permite que uma criança se entregue ao mundo com confiança.

 

O que se repete se consolida. O banho que vem sempre antes do jantar, a música que embala o sono, o caminho que se percorre todos os dias até a escola — tudo isso não é rigidez, é amor em forma de constância.

 

Entre o excesso e o vazio: os dois riscos da infância moderna

 

Hoje, há dois extremos convivendo lado a lado. De um lado, crianças com agendas lotadas, vivendo dias que parecem cronogramas de adultos: inglês, natação, robótica, terapia, balé, reforço escolar. Do outro, crianças sem qualquer estrutura, com horários irregulares, sono desorganizado e dias fragmentados entre telas e improvisos.

 

Ambos fazem mal. O excesso rouba o tempo livre, o tédio fértil, o brincar despretensioso — ingredientes fundamentais da criatividade e da saúde mental. A ausência de rotina, por outro lado, gera insegurança, desorientação e angústia.

 

A rotina verdadeira não está em nenhum desses polos. Ela é o meio-termo necessário entre a liberdade e o contorno. É o compasso que organiza a vida sem engessá-la.

 

Rotina não é agenda

 

Costumo dizer que rotina e agenda são coisas muito diferentes.A agenda é o que impõe: marca o horário, controla o tempo, mede a produtividade.A rotina é o que acolhe: organiza, mas permite respirar.

 

Enquanto a agenda fala de compromissos, a rotina fala de ritmos.E a infância é, acima de tudo, ritmo. O corpo, o sono, a fome, o brincar, o crescimento — tudo na criança obedece a pulsos internos, a tempos biológicos e afetivos que pedem continuidade.

 

O problema é que o ritmo humano vem sendo substituído pelo ritmo das telas e do relógio. O tempo digital é imediato, veloz, fragmentado. O tempo da infância é lento, circular, orgânico. Quando confundimos rotina com agenda, tiramos da criança o direito de viver o tempo de forma humana.

 

O papel da rotina no desenvolvimento emocional

 

A rotina é o primeiro texto que a criança lê.Antes das palavras, ela lê o ritmo da vida.Lê o gesto que se repete, o abraço que se renova, o olhar que diz “estou aqui”.

 

A previsibilidade trazida pela rotina é o que organiza o mundo interno. Sem ela, o cotidiano se torna caótico e imprevisível, e a criança não sabe o que esperar — nem de si, nem dos outros. Com ela, surge o sentimento de segurança, que é a base do desenvolvimento emocional.

 

Quando uma criança sabe o que vem depois, ela relaxa. E, ao relaxar, aprende, brinca, se expressa. O contrário também é verdadeiro: quando tudo é incerto, o corpo fica em alerta, o cérebro se ocupa em antecipar o perigo e o aprendizado se esvazia.

 

A rotina, portanto, não é apenas uma ferramenta de organização: é uma estrutura psíquica de confiança.

 

A rotina como tempo humano

 

Vivemos acelerados. E essa aceleração atravessa também a infância. Crianças estão crescendo entre compromissos, deslocamentos e telas. A casa e a escola, antes separadas por fronteiras simbólicas, agora se misturam em um mesmo fluxo de notificações, aulas online e estímulos infinitos.

 

Nesse contexto, a rotina é um gesto de resistência. Ela devolve à vida o que o tempo digital nos roubou: o ritmo humano.

 

O ritmo humano é o tempo do corpo, do toque, do olhar. É o tempo da refeição partilhada, do banho demorado, do caminho feito a pé. É o tempo do silêncio e da espera. É o tempo em que o vínculo pode acontecer.

 

A rotina devolve à infância essa temporalidade perdida. Ela marca as pausas, cria os intervalos e ensina a presença. É o antídoto contra o excesso — inclusive o excesso de dopamina e de estímulos que mantêm as crianças (e nós) em permanente estado de excitação.

 

Repetir é cuidar

 

Repetir não é perda de tempo. Repetir é construir tempo.Cada gesto repetido com atenção se transforma em símbolo, e o símbolo é o que dá sentido à vida.

 

Quando um adulto prepara o café da manhã todos os dias, está dizendo: “eu sustento você”.Quando conta a mesma história pela centésima vez, está dizendo: “você é digno do meu tempo”.Quando mantém os mesmos rituais de cuidado, está escrevendo um poema silencioso que a criança levará consigo pela vida toda.

 

Por isso, rotina não é prisão. É liberdade.A liberdade de viver sem medo, de criar sem se perder, de pertencer a algo que nos antecede.

 

O convite que a rotina nos faz

 

A rotina é um convite à presença.É um chamado para desacelerar e voltar ao essencial.É um lembrete de que a vida se constrói nas pequenas repetições — e que é nelas que mora o sentido.

 

Talvez o gesto mais revolucionário do nosso tempo seja este: voltar a cuidar da rotina.Não da agenda, não do desempenho, não da produtividade. Mas da rotina que acolhe, que protege, que dá forma à infância e à vida.

 

Porque, no fim, é ela que sustenta o amor.A rotina é o poema que se escreve todos os dias, verso a verso, na pele da infância.

 
 
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