INTERDISCIPLINARIDADE E TRANSVERSALIDADE
- Marcelle Berton
- há 6 dias
- 3 min de leitura

O conhecimento que não cabe em gavetas
Há muitos anos, observo uma cena que se repete nas escolas e que sempre me emociona. Pode acontecer no quintal depois da chuva, numa sala iluminada pela manhã ou no meio de uma brincadeira aparentemente simples. Um grupo de crianças encontra uma poça d’água. Umas se inclinam para se ver refletidas. Outras medem profundidades com gravetos. Uma delas pergunta por que a água não evaporou. Eu me aproximo e, em poucos segundos, percebo que nada daquilo cabe em uma única disciplina. Há ciência na observação, matemática nos gestos, linguagem nas hipóteses, filosofia nas perguntas que arriscam sobre o céu e a terra, ética quando decidem preservar a água. A vida chega inteira, sem fronteiras. A experiência nunca se apresenta fatiada.
E é justamente diante dessas cenas que me pergunto, todos os dias, como a escola responde a esse mundo que não se organiza em gavetas. Foi a partir dessa inquietação que passei a olhar com mais cuidado para dois movimentos essenciais do campo educacional: interdisciplinaridade e transversalidade. Eles nascem da tentativa de recompor um tecido que, historicamente, fragmentamos e, embora caminhem na mesma direção, fazem isso por lógicas diferentes.
A escola moderna herdou uma arquitetura que separa conhecimento por blocos. Matemática para um lado, língua para outro, ciência aqui, artes acolá. Essa organização ajuda na gestão, mas empobrece a experiência. Quando ensinamos por gavetas demais, fazemos com que a criança acredite que aprender é armazenar informações isoladas, e não compreender processos vivos. E é nesse ponto que surgem as respostas: costurar áreas ou permitir que certos temas as atravessem por completo.
Quando falo em interdisciplinaridade, penso nesse esforço de fazer as áreas dialogarem para compreender um fenômeno. Cada campo mantém sua identidade, mas se coloca a serviço de uma pergunta comum. É um movimento intencional, que precisa de articulação entre professores e de perguntas que não cabem sozinhas em lugar algum. A poça d’água, por exemplo, pode ser lida por múltiplas entradas. Cada disciplina contribui com uma lente, e, juntas, produzem uma compreensão mais profunda. A interdisciplinaridade costura o mundo sem dissolvê-lo.
Já a transversalidade se move de outro modo. Não nasce para articular áreas, e sim para reconhecer que certos temas são maiores do que qualquer disciplina. Ética, cuidado, diversidade, sustentabilidade, cidadania, tecnologia. Esses temas não pertencem a uma aula específica, porque fazem parte da vida. A transversalidade não organiza conteúdos, orienta posturas. Não é técnica, é cultura. Impregna o cotidiano, aparece na forma como decidimos, conversamos, cuidamos e convivemos.
Há diferenças importantes entre esses dois movimentos: a interdisciplinaridade opera com objetos concretos de estudo e precisa de planejamento; a transversalidade opera com valores contínuos e precisa de cultura escolar. A primeira funciona em tempos delimitados, em projetos e investigações, a segunda acontece sempre, atravessa tudo o que fazemos. Uma amplia compreensão intelectual, a outra amplia compreensão ética, social e política.
Frequentemente, vejo escolas confundirem essas instâncias. Muitas acreditam estar trabalhando transversalidade quando, na verdade, fazem apenas um projeto interdisciplinar temático. Outras acham que estão promovendo interdisciplinaridade quando apenas mencionam valores de forma pontual. A confusão nasce porque ambas reagem ao mesmo problema: a fragmentação da experiência humana. Mas cada uma resolve esse problema por caminhos diferentes.
A Filosofia da diferença ajuda a iluminar essa distinção. Deleuze descreve o real como uma rede de fluxos, contágios, rizomas. Nesse sentido, a transversalidade se aproxima de um atravessamento que se espalha, infiltra e transforma silenciosamente as práticas. Foucault nos lembra que certos temas funcionam como dispositivos que organizam discursos e comportamentos. Nietzsche nos convoca a transformar valores, e é disso que a transversalidade trata: de modos de existir antes de modos de ensinar.
A interdisciplinaridade, por sua vez, faz outra coisa. Conecta planos preservando suas diferenças. Reorganiza o mapa sem destruí-lo. Cria pontes. Permite uma leitura do mundo mais complexa, mas ainda estruturada.
Compreender essa diferença muda radicalmente o que fazemos na escola. Quando sabemos distingui-las, deixamos de tratar temas essenciais como projetos ocasionais. Ganhamos profundidade ética e clareza intelectual. Conseguimos olhar para o currículo como algo vivo, atravessado por grandes questões humanas e, ao mesmo tempo, capaz de investigar fenômenos concretos com rigor e sensibilidade.
Gosto de pensar que o conhecimento é como um rio. Em alguns momentos, precisa de margens para ganhar forma e direção. É o tempo da interdisciplinaridade, que estrutura e articula. Em outros momentos, precisa transbordar e ocupar territórios maiores. É o tempo da transversalidade, que dá sentido, valor e horizonte.
É nesse equilíbrio que acredito que uma escola se torna mais inteira. Uma escola que costura quando necessário e permite o atravessamento quando a vida pede. Uma escola que acolhe o real como ele é: complexo, misturado, vibrante. Uma escola que não força o conhecimento a caber em gavetas.
Uma escola onde uma simples poça d’água pode abrir o mundo inteiro.


