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QUANDO AS MÁQUINAS COMEÇAM A CORRIGIR EMOÇÕES

  • Marcelle Berton
  • 5 de nov.
  • 3 min de leitura
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Tenho pensado muito sobre uma matéria recente da WIRED que fala de um novo tipo de inteligência artificial: uma espécie de “corretor emocional”.

Sim, um spellcheck de sentimentos.

Você escreve uma mensagem e a máquina te avisa se o tom está agressivo, ansioso, sarcástico ou triste demais. Em seguida, sugere uma versão “melhor”, mais equilibrada, mais neutra, mais... aceitável.

 

De início, parece uma boa ideia. Quem nunca desejou uma ajudinha para responder mensagens difíceis, sem cair em provocações ou exageros?

Mas quanto mais leio sobre isso, mais penso que talvez estejamos abrindo mão de algo essencial: a humanidade contida no desequilíbrio das emoções.

 

Estamos acostumados a deixar que algoritmos escolham o que vemos, ouvimos, compramos, assistimos. Mas, agora, eles começam a decidir como sentimos. Ao nos dizer que uma mensagem está “forte demais”, a máquina nos convida a sermos sempre suaves, lineares, previsíveis, como se a emoção fosse uma falha de programação a ser corrigida.

 

O problema é que as emoções não são erros: são linguagem.

Elas dizem o que o corpo ainda não traduziu em palavras. Quando uma IA tenta limpá-las do texto, também apaga uma parte de quem somos. Talvez estejamos vivendo um tempo em que sentir demais se tornou inconveniente. Tudo precisa caber no campo do racional, do produtivo, do controlado. Mas um mundo que não tolera a emoção é um mundo que não sabe mais o que é viver junto.

 

Esses algoritmos de “tom correto” me lembram a velha escola: aquela que ensinava a responder certo, a se comportar bem, a se controlar o tempo todo. A escola que corrigia a letra, o gesto, o tom da voz, e também o modo de sentir. No fundo, essas IAs são a nova versão digital de um antigo modelo de educação emocional, que preferia a obediência à autenticidade. Um modelo que confundia disciplina com silêncio e maturidade com contenção. Talvez seja por isso que tanta gente adulta hoje precise de um aplicativo para dizer o que pode ou não dizer: porque crescemos aprendendo a temer nossas próprias emoções.

 

A verdadeira aprendizagem emocional não vem de corrigir o tom, mas de entender o que ele expressa. Não é dizer “fale mais calmo”, mas perguntar “o que te fez sentir assim?”. Em um mundo que cria filtros para tudo, voz, rosto, humor, opiniões, talvez resistir signifique reaprender a sentir sem pedir desculpas. A emoção é o que nos torna humanos, é o ruído que impede que tudo se torne máquina. Em vez de um corretor emocional, o que precisamos é de espaços de escuta e de cuidado. De escolas, famílias e relações em que as pessoas possam errar o tom e, ainda assim, serem compreendidas. Porque é nesse atrito, no que sai fora do padrão, que nasce o encontro verdadeiro.

 

Educar é, em grande parte, isso: ajudar o outro a colocar nome no que sente, a atravessar o desconforto sem precisar se corrigir. É ensinar que raiva, medo, tristeza e alegria não são falhas de caráter, mas formas de estar vivo.

 

Quando penso na infância, penso justamente nisso: em como as crianças ainda não têm medo de sentir. Elas choram, gritam, riem alto, se frustram, se reconciliam, tudo no mesmo dia. E, talvez, seja essa liberdade emocional o que a tecnologia, aos poucos, está apagando em nós. Não precisamos de máquinas que nos ensinem a falar “do jeito certo”. Precisamos de seres humanos que saibam ouvir até o que não sai perfeito.

Porque o futuro, por mais tecnológico que seja, continuará dependendo disso: de pessoas capazes de sentir, de errar o tom e, ainda assim, continuar em relação.

 
 
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