O QUE A CRIANÇA PERDE QUANDO VIRA COMPETÊNCIA
- Marcelle Berton
- há 2 horas
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Nunca gostei das palavras habilidades e competências. Sempre que aparecem em reuniões pedagógicas, em documentos oficiais ou em propostas de formação, sinto que algo se estreita dentro de mim. Não é porque ache que as crianças não aprendem ou não se desenvolvem. Não é porque eu rejeite a ideia de que elas ampliam repertórios, modos de agir, formas de compreender o mundo. O problema não está no que acontece com a criança, mas no tipo de mundo que essas palavras carregam.
Habilidades e competências vieram de um universo que não tem nada a ver com a infância.
Vieram de uma lógica empresarial, produtivista, orientada por metas, indicadores, eficiência e performance. Nasceram para medir rendimento de adultos em contextos corporativos, e não para compreender a complexidade viva de uma criança que pensa, sente e cria. Quando essas palavras entram na escola, carregam junto essa herança dura. Transformam a aprendizagem em processo técnico. Transformam o professor em gestor de resultados, a criança em projeto.
Não consigo olhar para uma criança e imaginar que seja um conjunto de competências a serem treinadas. Isso me parece uma violência silenciosa. A criança não é alguém que precisa atingir marcos, não está incompleta aguardando certificações internas, não é um manual de instruções, nem uma lista de habilidades que precisa cumprir para ser considerada adequada. A criança já é. Ela existe inteira. Pensa com aquilo que tem, com aquilo que vive, com o que sente. E a escola deveria ampliar esses movimentos, não enquadrá-los numa rubrica.
Outra coisa que me incomoda é que essas palavras pressupõem uma linearidade que simplesmente não corresponde ao funcionamento do pensamento humano.
O cérebro não aprende por etapas ordenadas, não se desenvolve como escada, não opera como manual. Ele é campo de conexões, de desvios, de atravessamentos. Ele é rizomático, funciona como mangue. O pensamento cresce para todos os lados ao mesmo tempo, sem centro, sem hierarquia, sem um núcleo original identificável. Quando alguém tenta organizar isso em forma de habilidade, cria uma ilusão de ordem., e, quando tenta organizar em forma de competência, cria um ideal normativo que a maior parte das crianças não vai habitar.
Essas palavras também deslocam a atenção do processo para o resultado. Quem pergunta qual habilidade essa atividade desenvolve acaba esquecendo de perguntar o que essa criança está vivendo enquanto faz. Esquece de perguntar o que descobriu sobre si mesma, esquece de perceber se ali nasceu uma pergunta, esquece de observar o vínculo, o afeto, a relação, a curiosidade. Fica tão preocupado com o que a criança deve entregar que deixa de ver o que está produzindo. E, muitas vezes, o que ela produz não cabe em uma régua.
Habilidades e competências pertencem ao universo da mensuração. São palavras que pedem controle, que pedem parâmetros, padronização. E toda padronização é, de alguma forma, uma violência contra a singularidade. Cada criança pensa de um jeito, cada criança estrutura o mundo internamente de um jeito, aprende com aquilo que a atravessa. Não com aquilo que a escola decide que deveria atravessá-la. A tentativa de medir aprendizado por competências transforma a infância em processo de adequação.
Eu acredito em outra coisa, que a infância é território de criação, não de desempenho.
Acredito que aprender não é cumprir etapas, mas ampliar possibilidades. Que o pensamento não se desenvolve por competência, mas por encontro. Acredito que a função da escola é cuidar da linguagem, dos vínculos, do pensamento vivo, do desejo, da curiosidade. A função da escola não é formar sujeitos competentes, mas sujeitos inteiros.
Por isso prefiro outras palavras. Prefiro pensamento, gesto, linguagem, imaginação, desejo. Prefiro o que escapa, o que não cabe, o que cresce para além das fronteiras. Prefiro a criança que se perde para depois se encontrar. Prefiro a que faz conexões inesperadas, a que interrompe a pauta porque teve uma ideia nova, a que não aprende por etapas, mas por contágios.
As palavras que a escola escolhe dizem muito sobre a escola que quer ser. Habilidades e competências pertencem a uma escola que mede. Prefiro pertencer a uma escola que acompanha, que escuta, que entende que a aprendizagem é vida em circulação. Uma escola que reconhece que a força da infância não está no que ela entrega, mas no que inventa.
Não quero crianças competentes, quero crianças vivas. Quero crianças pensando como mangue, existindo com toda a potência que têm. E nenhuma palavra que venha da lógica da performance é capaz de honrar isso.


